A superposição entre dor crônica e insônia tem sido demonstrada por várias pesquisas. Este artigo, escrito em linguagem acessível por uma neurologista e expert no campo da saúde do cérebro, examina 5 aspectos dessa relação: os distúrbios do sono causados pela dor crônica; como a dor crônica afeta o sono; os distúrbios do sono que afetam a resposta de uma pessoa à dor; as consequências psiquiátricas de distúrbios do sono relacionados à dor crônica; e as estratégias de avaliação e tratamento.
“A privação de sono é fisicamente miserável e criativamente catártica, à medida que as paisagens internas emergem de suas cinzas adormecidas.”
A insônia no Brasil atinge 73 milhões de pessoas, segundo a Associação Brasileira do Sono (ABS). Nem tanto, se tomamos como referência os 30 milhões de americanos que, segundo a revista médica Psychiatric Times, são diagnosticados com insônia nos Estados Unidos. (A população brasileira é dois terços da americana).
Mais seguro é ficar com o dado aportado por um artigo científico na virada do século, com (aproximadamente) pelo menos 6% da população atendendo a critérios diagnósticos rigorosos, e até 48% apresentando sintomas.
De qualquer maneira, é claro que a insônia é um distúrbio do sono prevalente, e principalmente em tempos de pandemia, seja nos Estados Unidos ou no Brasil.
Mais importante para nós agora é que estudos epidemiológicos, transversais e prospectivos concordam em que insônia, dor crônica e depressão interagem mutuamente, cada uma aumentando o risco de surgimento e/ou exacerbação da outra.
O artigo transcrito a seguir se concentra na relação entre dor crônica e insônia. É inegável que a comorbidade entre ambas as condições existe: num estudo de 772 pacientes, homens e mulheres, a insônia caracterizou os com fibromialgia (39,8%), artrose (27,3%), artrite reumatoide (25,6%), cefaleia do tipo tensional (17,6 %) e enxaqueca (16,8%) – todas doenças crônicas que geram dor persistente.
DISTÚRBIOS DO SONO COMO SEQUELAS DE DOR CRÔNICA
A dor tem um impacto substancial no sono, e uma quantidade insuficiente de sono reparador pode aumentar a suscetibilidade à dor. Breves surtos de dor – como dor devido a uma lesão traumática ou um problema médico de curta duração – podem causar efeitos adversos quase imediatos no funcionamento diurno e alerta. Os sintomas podem começar a se manifestar logo no dia seguinte a uma noite de sono inadequado. A dor crônica pode levar à privação de sono prolongada que pode ter complicações físicas, emocionais e comportamentais. Por exemplo, na literatura reumatológica, há muito tempo se observa que há uma associação entre dor musculoesquelética crônica, distúrbios do sono e depressão.1 Pesquisas mais recentes tentam elucidar os fatores contribuintes e abordar o planejamento do tratamento.
O sono restaurador é um benefício do controle eficaz da dor. Uma estratégia de controle da dor também pode exigir atenção dedicada à qualidade e quantidade do sono. A avaliação dos distúrbios do sono no contexto da dor crônica requer uma avaliação abrangente dos sintomas subjetivos e testes objetivos, como questionários de sono e uma polissonografia durante a noite. O tratamento dos problemas do sono causados pela dor crônica é individualizado e multifacetado e deve levar em consideração a condição de dor crônica, o distúrbio específico do sono e as sequelas psiquiátricas.
Distúrbios do sono causados por dor crônica
Estima-se que entre 50% a 80% das pessoas que vivem com dor crônica têm distúrbios do sono. Por exemplo, um estudo revelou que 53% dos participantes com dor crônica preencheram os critérios para insônia, enquanto apenas 3% dos controles sem dor preencheram os critérios.2 Também existe uma relação potencial de dose-resposta entre a intensidade da dor e seu impacto no sono.
A insônia é o distúrbio do sono mais comumente observado associado à dor crônica. Uma grande meta-análise também observou uma alta prevalência de outras interrupções do sono, com as 3 mais comuns sendo insônia com 72%, síndrome das pernas inquietas com prevalência de 32% e apneia obstrutiva do sono com prevalência de 32%.3
Tabela – Transtornos do sono comuns associados à dor crônica
INTERRUPÇÃO DO SONO | PREVALÊNCIA (%) |
Insônia | 72 |
Síndrome das pernas inquietas | 32 |
Apneia obstrutiva do sono | 32 |
É notável que os 3 distúrbios do sono mais comumente observados somaram mais de 100%, ressaltando o fato de que a dor crônica pode estar associada a mais de um tipo de distúrbio do sono por vez (Tabela) .
Como a dor afeta o sono
Existem vários mecanismos pelos quais a dor interfere no sono. A dor é uma distração óbvia que dificulta o adormecimento e pode levar ao despertar noturno, especialmente quando o efeito da medicação para dor passa. No entanto, a dor também interfere na fisiologia do sono de maneiras direcionadas que vão além da distração consciente causada pelo desconforto. Existe uma variabilidade nos diagnósticos de dor crônica, e os tipos distintos de síndromes de dor afetam o sono de maneira diferente. Além disso, o impacto da dor crônica no sono parece ser multidimensional. Pesquisas sobre várias síndromes de dor e seu impacto fisiológico no sono fornecem uma série de insights sobre as formas como a dor interfere no sono.
Por exemplo, a dor aguda pós-cirúrgica também tem efeitos quantificáveis no sono, incluindo uma diminuição mensurável no tempo gasto na fase de movimento rápido dos olhos (REM) do sono. As alterações são observadas não apenas após a anestesia geral, mas também após a anestesia regional.4 Essa observação sugere que a própria dor (em vez do efeito do anestésico geral) é pelo menos um fator que contribui para os distúrbios do sono associados à dor pós-operatória.
A fibromialgia está frequentemente associada a distúrbios do sono.1 Pacientes com fibromialgia apresentam redução do sono de ondas curtas e ritmos α anormais, com episódios de vigília durante o sono não REM.5 Fadiga diurna e sono não restaurador são queixas comuns entre pacientes com fibromialgia, e esses achados da polissonografia são consistentes com qualidade de sono inadequada, mesmo quando os pacientes parecem ter dormido por um número adequado de horas.
A dor neuropática também está associada a distúrbios do sono, e há uma forte relação bidirecional entre os distúrbios do sono e as características neuropáticas da dor.6
Os distúrbios do sono são comuns entre pacientes com cefaleias crônicas e recorrentes. Os tipos de cefaleia comuns, incluindo cefaleias tensionais e enxaquecas, costumam ter sintomas associados além da dor, incluindo distúrbios do sono.7 Tal como acontece com a fibromialgia, a quantidade de tempo gasto dormindo não é necessariamente diminuída em pacientes com distúrbios do sono associados à cefaleia. Em vez disso, são os efeitos restauradores do sono que são afetados pela dor de cabeça crônica, e não a quantidade total de sono por noite. As características dos distúrbios do sono também podem variar com diferentes tipos de dores de cabeça.8
Privação de sono e dor
Os distúrbios do sono também podem afetar a resposta de uma pessoa à dor. À medida que os estágios do sono são comprometidos, a dor diurna aumenta por meio de um processo de hiperalgesia, no qual estímulos menores de dor resultam em maior percepção da dor e maior comprometimento associado à dor do que seria de esperar.9
De acordo com pesquisas em pacientes com fibromialgia, a privação do sono prejudica as vias de inibição da dor que normalmente ajudam a controlar a dor.10 Estudos também sugerem que a privação do sono pode levar à inflamação sistêmica que pode amplificar a dor.11 As evidências não sugerem que a privação do sono pode causar dor de forma independente; em vez disso, a privação do sono pode amplificar a percepção da dor que já está ocorrendo como resultado de causas subjacentes.
É importante observar que, embora haja uma forte associação entre distúrbios do sono e dor crônica e distúrbios do humor, é muito difícil determinar qual deles tem um impacto mais forte sobre os outros.12
Consequências psiquiátricas de distúrbios do sono relacionados à dor
Uma série de sequelas psiquiátricas podem complicar os distúrbios do sono induzidos pela dor. Existe uma forte relação entre a dor crônica associada a distúrbios do sono e os diagnósticos subsequentes de depressão e ansiedade.13 Outros problemas psiquiátricos, como delírios, alucinações ou mania, não são comumente observados com distúrbios do sono induzidos pela dor.
Estudos que analisam a dor neuropática sugerem que a inflamação pode estar associada a mudanças psiquiátricas e alterações comportamentais.14 No entanto, os especialistas não têm certeza se pode haver outros fatores contribuintes também, e pesquisas futuras a respeito da etiologia dos distúrbios psiquiátricos nos distúrbios do sono induzidos pela dor podem responder a algumas das perguntas atualmente sem resposta sobre essas relações complexas.
Independentemente da causa molecular exata, os diagnósticos psiquiátricos de ansiedade ou depressão podem causar grave sofrimento ao paciente e também podem levar a mudanças comportamentais. Essas questões devem ser abordadas no ambiente clínico para que os pacientes possam ter acesso ao alívio dos sintomas e uma melhor qualidade de vida.
Estratégias de avaliação e tratamento
Devido à relação bidirecional entre a dor e os distúrbios do sono, os especialistas recomendam avaliar os pacientes com dor crônica para distúrbios do sono não diagnosticados.15 A avaliação pode incluir questionários de sono comumente usados, como o Mini Sleep Questionnaire (MSQ), o Índice de Qualidade do Sono de Pittsburgh (PSQI) e a Escala de Sonolência de Epworth. As medidas objetivas incluem polissonografia, Teste de Latência Múltipla do Sono (MSLT) e Teste de Manutenção da Vigília (MWT). Além disso, testes de triagem para depressão e ansiedade também são frequentemente necessários. Os principais componentes da avaliação incluem o diagnóstico das sequelas da dor, além do diagnóstico da síndrome da dor.
O tratamento da dor tem efeitos de longo alcance além do controle da dor. No entanto, o controle dos distúrbios do sono relacionados à dor não se baseia apenas no controle da dor. As intervenções que visam diretamente o tratamento dos distúrbios do sono estão associadas a um melhor resultado do que as intervenções que visam apenas tratar a dor.16
Atualmente, muito pouca pesquisa tem sido feita sobre o tratamento ideal dos distúrbios do sono em pacientes com dor crônica e há uma falta de diretrizes formais para abordar o problema. A pesquisa está surgindo, no entanto, e alguns especialistas recomendam adaptar os cuidados do sono para o paciente específico, em vez de usar uma abordagem geral para gerenciar os distúrbios do sono para pacientes nos quais se acredita que a dor crônica seja a causa do problema do sono.17 Alguns autores chegam a sugerir que a dor crônica é uma tríade que inclui dor, distúrbios do sono e depressão.18
Existem várias abordagens de tratamento diferentes para distúrbios do sono associados à dor, incluindo terapia cognitivo-comportamental, medicação e suporte respiratório durante o sono para pacientes que deles precisam.19 O tratamento da dor crônica deve sempre levar em consideração os problemas do sono. Os opioides, por exemplo, podem alterar a arquitetura do sono e, embora existam muitas desvantagens no uso de opioides a longo prazo para o tratamento da dor crônica, são raras as situações em que são prescritos. Este tratamento pode ser especialmente problemático para pacientes com distúrbios respiratórios do sono, como apneia do sono. Dado o complicado equilíbrio envolvido no controle da dor crônica, os opioides ainda podem ser uma parte apropriada do plano de tratamento para certos pacientes que apresentam efeitos colaterais respiratórios. Nesses casos, o uso de assistência respiratória, como pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP) durante o sono, pode ser uma solução eficaz.20
A abordagem geral para o tratamento da dor, que é complicada por problemas psiquiátricos e de sono, requer um plano personalizado. Pode ou não envolver tratamentos para mais de um diagnóstico da tríade dor / distúrbio do sono / depressão. Por exemplo, os antidepressivos podem ajudar no controle da dor e na estabilização do humor. E os anticonvulsivos podem ajudar no controle da dor enquanto também melhoram o sono.21 Mas, apesar dessas sobreposições potenciais óbvias no tratamento, alguns pacientes podem se beneficiar de abordagens de tratamento ideais adaptadas a cada diagnóstico, mesmo que tratamentos completamente separados para cada condição sejam necessários para obter o controle dos sintomas. Frequentemente, as intervenções farmacológicas devem ser selecionadas com base nos sintomas-alvo. Mesmo as abordagens de manejo conservadoras, como aconselhamento, terapia cognitivo-comportamental e fisioterapia são mais eficazes quando são específicas para sintomas, porque as abordagens conservadoras para tratar cada condição não são idênticas.22