Hipócrates deixou tratar do sofrimento que a dor provoca de fora do seu famoso juramento. Isso foi uns 4 séculos antes de Cristo e acabou complicando bastante a vida de muita gente desde então. Tanto assim que até o Papa Francisco foi chamado a dar um basta nisso.
“É difícil fazer um homem entender algo, quando o seu emprego depende de não entendê-lo.”
Talvez fosse por isso que, em 2016, um grupo de médicos italianos lhe fez solene entrega de um manifesto da classe. Ou, quem sabe, tenha sido por ser o Papa um colega, profissional da saúde – afinal, a alma não adoece também? – e portanto, supostamente focado no alívio da dor. Vai saber.
O fato é que o tal manifesto foi entregue em mãos. E deve ter viralizado porque logo depois foi apresentado numa sessão das Nações Unidas.
Ah, ia me esquecendo: o manifesto aquele era sobre… DOR. Isso mesmo, dor.
L’IMPEGNO CONTRO IL DOLORE. IL MANIFESTO DEI MEDICI ITALIANI.
As atrocidades a cargo de padres pedófilos confirmadas em trinta países, contudo, monopolizaram os holofotes e o ato passou inadvertido.
No Brasil, ao menos, nenhum Conselho Regional de Medicina se pronunciou. Nem em contra, nem a favor. Talvez fosse porque por ali pensam que os médicos, por definição, estão por dentro do conhecimento da dor e da prática visando o seu alívio. Então seria chover no molhado.
Seria, mas eu já penso que não estão. A experiência da dor sequer é ensinada nas faculdades de medicina, ou de fisioterapia, ou de psicologia… como poderiam estar? Convenhamos, na vida real, 90% do foco dos que cuidam da saúde – talvez com a exceção dos(as) enfermeiros(as) – mira a doença, e não o sofrimento.
Os fatos não cessam de existir somente porque são ignorados.
O Manifesto é o seguinte:
O Decálogo
- Eu sou um médico e respeito o Juramento de Hipócrates
- Eu tenho que tratar a dor
- Eu devo cuidar do sofrimento que vem da dor
- Eu tenho que trabalhar para o bem-estar da pessoa
- Eu tenho que considerar essencial a qualidade do atendimento
- Eu tenho que me comprometer a garantir que o acesso ao atendimento de todas as pessoas seja garantido, onde quer que eles nasçam e morem
- Eu tenho que evitar as desigualdades e tratar todas as pessoas, independentemente da idade, sexo, etnia e religião
- Eu tenho que basear as decisões de tratamento no respeito da vontade da pessoa e na defesa da dignidade humana
- Eu tenho que compartilhar e promover o conhecimento sobre o cuidado da dor
- Este é o meu compromisso em melhorar a qualidade de vida das pessoas com dor.
Se algum médico porventura ler estas mal traçadas, espero que não fique ofendido. Espero, mas não temo. Eu sou um paciente e é o que eu tenho visto e continuo vendo: nos últimos cinquenta anos a ciência médica tem feito progressos portentosos, mas não no alívio do sofrimento, uma responsabilidade hoje tacitamente “subdelegada” à enfermagem e aos laboratórios farmacêuticos. O melhor que esse médico pode fazer, então, é ler o Manifesto e refletir sobre ele no contexto de sua prática. E se doer, depois repassá-lo a todos seus colegas e colar uma cópia logo na entrada do seu consultório. Os pacientes, ao menos, vão agradecer.